sábado, 22 de dezembro de 2012


O Apito do Algodão Doce


Alguns objetos deixam marcas na nossa memória afetiva, delimitando, muitas vezes, traços de personalidade. Assim é que recordo de saudosos acontecimentos da minha infância e da minha semi-adolescência... Porém, poucas coisas são tão expressivas quanto o apito de algodão doce, utensílio colorido e leve que os “vendedores de nuvens” usam para atrair a clientela. Lembro-me do som estridente que conclamava os meninotes da rua para a compra do néctar de sacarose; não havia evento mais democrático do que esse (até as crianças presas pelas garras das mães conseguiam anistia).
Não havia hora certa para ouvirmos aquele chamado celestial, a imprevisibilidade dava tom solene ao ato. Éramos pegos de surpresa por aquele sujeito simples, com boné de político e roupa rasgada guiando a sua inseparável bicicleta encantada por aqueles balões de aniversário e algodões. Queríamos voar também, conhecer todos os bairros a bordo da liberdade. Pra mim, aquele ser era um encantador de crianças, tal qual um mágico ou um palhaço. No meu caso, eu me apaixonei pelo apito tão loucamente a ponto de querer possuir um.
Queria aquela minha gaita de plástico, almejava tocar todas as notas, soprar todos os seus espaços e alcançar, quem sabe, a condição de ilusionista. Treinava mentalmente aquele acorde executado magistralmente pelo encantador: fuiuií, fuiiiúi, fuiuiuiú... Não sei muito bem quando nem onde obtive o meu tão sonhado apito, mas creio que o recebi como presente por bom comportamento. O fato é que me lembro dele com a estima de um parente. Achava-o e perdia-o com uma tremenda facilidade. Quando o encontrava sujo e abandonado em algum espaço de parede ou no quarto da bagunça, era uma alegria descomunal. Lavava o estimado objeto como quem lava um bebê. Depois de recondicionado, executava incessantemente durante horas toda a sua potência sonora (foram incontáveis as reprimendas que sofri por parte da minha mãe e da minha avó!). Aquele apito não era apenas instrumento, era um verdadeiro amigo! Eu tentei me igualar àquele vendedor, quis rivalizar e acabei sendo mais criança, adquirindo diversão concentrada nos períodos vespertinos.
Eu continuei a gostar de algodão doce, também mantive os antigos laços com o vendedor, admirando-o na sua passagem pela rua. Isso me fez gostar mais ainda daquele som e daquela marcha acompanhada pelas crianças que não tinham dinheiro pra comprar e pediam ao nobre um pouco do seu cobiçado produto. A mágica desse cortejo pode ter sido vista por muitos, até em bairros dos centros urbanos, mas nas cidades do interior esse rito acontece com uma maior dramaticidade, pois o dinheiro ganha quase que um aspecto secundário. Como nos era prazeroso saber que podíamos trocar garrafas de bebidas alcoólicas pelo tão sonhado sumo! Alguns de vocês podem não imaginar o alvoroço que essa condição causava, era uma verdadeira mobilização infantil! Queríamos as garrafas e ponto! Mas queríamos as mais valiosas: as brancas e limpas que abrigavam as cachaças. As garrafas de cerveja tinham algum valor, mas nossos olhinhos brilhavam ao ver aquela garrafa abandonada nos muros ou nos terrenos baldios. Quando encontrávamos algumas em condição de uso, lavávamos prontamente, dando vida aos nossos interesses e impulsos.
Aquele era um tempo em que o doce do algodão se misturava com a terra que caía das garrafas. Não sabíamos a importância daquilo, o motor da nossa ação não era a ecologia, não era a reciclagem. Na busca pelas garrafas a gente não fazia distinção, a nossa mendicância estava contemplada porque era digna, porque não era reflexo da negligência alheia. Também não julgávamos as pessoas pelos seus costumes ou vícios etílicos; os bêbados e vadios eram os nossos principais fornecedores.
Tudo se consumava no momento da troca, impulso sublime que recompensava todos os nossos sacrifícios. Na busca por garrafas, encontramos vários locais de brincadeiras, transgredimos regras ao invadir propriedades alheias. Tudo era equivalente à dimensão lúdica que não implica em conveniências ou códigos de etiqueta. Na imprecisão da chegada do vendedor, nós, crianças livres, construíamos o terreno da livre iniciativa dos felizes. O vendedor e o apito eram apenas elementos constitutivos; o que importava mesmo era a alegria etérea que de desmanchava na boca como aqueles doces algodões.

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