O Apito do
Algodão Doce
Alguns objetos
deixam marcas na nossa memória afetiva, delimitando, muitas vezes, traços de
personalidade. Assim é que recordo de saudosos acontecimentos da minha infância
e da minha semi-adolescência... Porém, poucas coisas são tão expressivas quanto
o apito de algodão doce, utensílio colorido e leve que os “vendedores de
nuvens” usam para atrair a clientela. Lembro-me do som estridente que
conclamava os meninotes da rua para a compra do néctar de sacarose; não havia
evento mais democrático do que esse (até as crianças presas pelas garras das
mães conseguiam anistia).
Não havia hora
certa para ouvirmos aquele chamado celestial, a imprevisibilidade dava tom
solene ao ato. Éramos pegos de surpresa por aquele sujeito simples, com boné de
político e roupa rasgada guiando a sua inseparável bicicleta encantada por
aqueles balões de aniversário e algodões. Queríamos voar também, conhecer todos
os bairros a bordo da liberdade. Pra mim, aquele ser era um encantador de
crianças, tal qual um mágico ou um palhaço. No meu caso, eu me apaixonei pelo
apito tão loucamente a ponto de querer possuir um.
Queria aquela
minha gaita de plástico, almejava tocar todas as notas, soprar todos os seus
espaços e alcançar, quem sabe, a condição de ilusionista. Treinava mentalmente
aquele acorde executado magistralmente pelo encantador: fuiuií, fuiiiúi,
fuiuiuiú... Não sei muito bem quando nem onde obtive o meu tão sonhado apito,
mas creio que o recebi como presente por bom comportamento. O fato é que me
lembro dele com a estima de um parente. Achava-o e perdia-o com uma tremenda
facilidade. Quando o encontrava sujo e abandonado em algum espaço de parede ou
no quarto da bagunça, era uma alegria descomunal. Lavava o estimado objeto como
quem lava um bebê. Depois de recondicionado, executava incessantemente durante
horas toda a sua potência sonora (foram incontáveis as reprimendas que sofri
por parte da minha mãe e da minha avó!). Aquele apito não era apenas
instrumento, era um verdadeiro amigo! Eu tentei me igualar àquele vendedor,
quis rivalizar e acabei sendo mais criança, adquirindo diversão concentrada nos
períodos vespertinos.
Eu continuei a
gostar de algodão doce, também mantive os antigos laços com o vendedor,
admirando-o na sua passagem pela rua. Isso me fez gostar mais ainda daquele som
e daquela marcha acompanhada pelas crianças que não tinham dinheiro pra comprar
e pediam ao nobre um pouco do seu cobiçado produto. A mágica desse cortejo pode
ter sido vista por muitos, até em bairros dos centros urbanos, mas nas cidades
do interior esse rito acontece com uma maior dramaticidade, pois o dinheiro
ganha quase que um aspecto secundário. Como nos era prazeroso saber que
podíamos trocar garrafas de bebidas alcoólicas pelo tão sonhado sumo! Alguns de
vocês podem não imaginar o alvoroço que essa condição causava, era uma verdadeira
mobilização infantil! Queríamos as garrafas e ponto! Mas queríamos as mais
valiosas: as brancas e limpas que abrigavam as cachaças. As garrafas de cerveja
tinham algum valor, mas nossos olhinhos brilhavam ao ver aquela garrafa
abandonada nos muros ou nos terrenos baldios. Quando encontrávamos algumas em
condição de uso, lavávamos prontamente, dando vida aos nossos interesses e
impulsos.
Aquele era um
tempo em que o doce do algodão se misturava com a terra que caía das garrafas.
Não sabíamos a importância daquilo, o motor da nossa ação não era a ecologia,
não era a reciclagem. Na busca pelas garrafas a gente não fazia distinção, a
nossa mendicância estava contemplada porque era digna, porque não era reflexo
da negligência alheia. Também não julgávamos as pessoas pelos seus costumes ou
vícios etílicos; os bêbados e vadios eram os nossos principais fornecedores.
Tudo se consumava no momento da troca, impulso sublime
que recompensava todos os nossos sacrifícios. Na busca por garrafas,
encontramos vários locais de brincadeiras, transgredimos regras ao invadir
propriedades alheias. Tudo era equivalente à dimensão lúdica que não implica em
conveniências ou códigos de etiqueta. Na imprecisão da chegada do vendedor,
nós, crianças livres, construíamos o terreno da livre iniciativa dos felizes. O
vendedor e o apito eram apenas elementos constitutivos; o que importava mesmo
era a alegria etérea que de desmanchava na boca como aqueles doces algodões.
Nenhum comentário:
Postar um comentário